Camilo Rocha
Colégio no Rio suspendeu livro com história passada na ditadura militar depois de reclamações de pais; educadores ouvidos pelo ‘Nexo’ falam sobre a importância do acesso a conteúdos diversos

Depois de sofrer pressões de pais, o tradicional colégio carioca Santo Agostinho removeu de sua lista de leituras para alunos do sexto ano a obra “Meninos sem pátria”, de Luiz Puntel. Escrita em 1981, a obra conta a história de um jornalista que deixa o Brasil por estar na mira da repressão política. É um clássico da série Vaga-Lume, coleção de livros infanto-juvenis de estrondoso sucesso.
Os protestos dos pais, que promoveram um abaixo-assinado, foram endossados pela página de Facebook Alerta Ipanema, que traz em sua foto de capa uma imagem de apoio às candidaturas de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência e de Flavio Bolsonaro (PSL) ao Senado.
“O livro critica governos militares enaltecendo a ótica de esquerda”, diz texto da página que classificou a obra como “ideologia comunista”.
Nos comentários do post da Alerta Ipanema, a quantidade de usuários que criticam o livro é superada pelos que condenam a “censura” e outros que dizem que o conteúdo do livro não tem nada de mais.
No dia 2 de outubro, a coordenação do Ensino Fundamental II da escola comunicou aos pais que a obra estava suspensa “para fins de atividades escolares”. Localizado no bairro do Leblon, o colégio de orientação católica é um dos mais tradicionais da Zona Sul do Rio. Na sexta-feira (5), pais e alunos promoveram uma manifestação em frente ao colégio para protestar contra a suspensão do livro.
O que há na obra
Em “Meninos sem pátria”, o jornalista José Maria se vê forçado a ir para o exílio com a mulher e dois filhos. No jornal “O Binóculo” ele escreve sobre um padre que foi preso e torturado pela ditadura. Seu artigo o torna visado pelos agentes da repressão. A publicação onde trabalha é atacada.
A família foge para a Bolívia. Depois vai para o Chile, até se estabelecer na França. Os filhos crescem e atingem a adolescência no exílio. Sentem saudades da vida e das coisas do Brasil. Um deles vive um romance apaixonado com uma menina francesa.
Em entrevista à Veja, o autor ressalta que a trama central é esse relacionamento. Entretanto, a ditadura e o exílio funcionam como pano de fundo. “Houve uma ditadura, com Congresso Nacional fechado, com presos, com mortes”, afirma Puntel.

A história do livro é amplamente inspirada no caso real do jornalista José Maria Rabêlo, que escrevia para o jornal O Binômio. Depois de ter a redação do veículo invadida e destruída por agentes da repressão, Rabêlo saiu do país com a esposa e sete filhos em 1964.
Rabêlo e um dos seus filhos, o fotógrafo e blogueiro Fernando, chegaram a dar uma palestra no Colégio Santo Agostinho de Belo Horizonte sobre sua história e o período ditatorial. Falando ao jornal O Globo, o jornalista lamentou que o colégio tenha aderido à “irracionalidade dos pais, que estão vivendo este momento de alucinação que o Brasil atravessa, de intolerância, agressividade”.
Livros na fogueira
“Se você é americano, você deve permitir a livre circulação de todas as ideias em sua comunidade, não apenas as suas… foi uma péssima lição que você ensinou aos jovens de uma sociedade livre”, declarou o escritor Kurt Vonnegut em carta escrita ao diretor de uma escola que ordenou que 35 cópias de seu romance “Slaughterhouse Five” fossem queimadas no forno da escola.
O episódio ocorreu em 1973. Desde muito antes, os Estados Unidos conhecem tentativas de bloquear o acesso de estudantes a certos livros. De acordo com a ALA, a Associação das Bibliotecas Americanas, livros são combatidos em escolas e bibliotecas públicas naquele país por quatro motivos principais: valores familiares, religião, visões políticas e direitos de minorias.
“Descobrir que nem todos pensam da mesma forma é uma tremenda liberdade”
Isabel Gervitz psicóloga e psicanalista, integrante do Laboratório de Educação
Existem várias associações de pais contra livros indesejados nos EUA, como a Pabbis, acrônimo cujo significado pode ser traduzido por “pais contra maus livros nas escolas”. Em seu site, a ALA mantém uma lista de “livros frequentemente questionados”. Inclui da série Harry Potter a “Vamos a Cuba ( A Visit to Cuba)”, de Alvin Schwartz, que um pai de Miami atacou por considerá-lo elogioso a Cuba.
Em março de 2018, pais de alunos do Sesi de Volta Redonda, no Rio de Janeiro, questionaram a utilização em aula do livro “Oma-oba: Histórias de Princesas”, da escritora Kiusam de Oliveira. Alegaram que, por retratar a cultura africana, a obra estaria em desacordo com sua orientação religiosa evangélica. O Sesi suspendeu o livro inicialmente, mas acabou voltando atrás na decisão, depois de protestos contra a medida.
A importância da opinião diferente
“Um livro não é capaz de influenciar ninguém por si, nem para o mal e tampouco para o bem. Não é porque lê que alguém se torna melhor ou pior; que age de uma forma ou de outra”, declarou ao Nexo Sandra Medrano, coordenadora pedagógica da Comunidade Educativa Cedac. Para a educadora, se o livro tivesse tal poder de influência, se poderia também pensar que ele funcionaria como solução para diversos problemas. “Mas não é assim que funciona.”
Para a psicóloga e psicanalista Isabel Gervitz, a apresentação de uma obra para uma criança deve vir acompanhada de conversa, escuta e ponderações. “Penso que a ‘má influência’ de algo está principalmente na maneira de apresentar e de trabalhar as questões que surgem depois dessa interação”, afirmou Gervitz, que integra a equipe do Laboratório de Educação.
As escolas precisam dialogar com os pais para que estes entendam que a preparação de uma lista de leitura é fundamentada em “critérios educacionais. E isso precisa ser colocado à luz para que as famílias compreendam de que maneira tal conteúdo ou livro se relaciona às intenções formativas”, acredita Medrano. Na outra ponta, a educadora afirma que os pais devem avaliar se “princípios, valores e metodologia propostos estão de acordo com suas expectativas”.
O encontro com pontos de vista e conteúdos diversos “é fundamental para o desenvolvimento”, nas palavras de Gervitz. A começar pelo aprendizado da convivência com o diferente.
“Confrontar-se com algo que provoca estranheza, contradição e dúvida permite relativizar a própria posição de certeza e, a partir disso, sair em busca de algo original, de uma nova síntese. É isso que nos faz refletir e nos movimenta em direção a outras respostas e a novos conhecimentos”, explicou. “Descobrir que nem todos pensam da mesma forma é uma tremenda liberdade.”
Fonte: NEXO JORNAL LTDA.